Gota é uma doença conhecida desde a Antiguidade. Descrita por Hipócrates dois séculos antes de Cristo, foi chamada de “doença dos reis”, porque a nobreza, os intelectuais e as pessoas ricas da Idade Média e dos séculos XVII e XVIII pareciam mais vulneráveis a essa moléstia.
Não é novidade de que a gota está ligada ao ácido úrico cuja produção aumenta e provoca a formação de cristais que se depositam em várias regiões do corpo. Muita gente acha que certas bolhinhas que, às vezes, aparecem nas mãos e nos pés, são sinal de que os níveis de ácido úrico estão elevados no organismo e que a pessoa tem gota. Isso não é verdade. As dores articulares são o principal sintoma dessa enfermidade cujas crises, em geral, se agravam à noite e acometem mais as extremidades.
Gota é uma doença implacável que não tem cura, mas tem controle e as crises dolorosas podem ser evitadas desde que a pessoa não descuide do tratamento.
GOTA E ÁCIDO ÚRICO
Drauzio – Qual a relação entre gota e ácido úrico?
Cristiano Zerbini – O ácido úrico é um componente natural do metabolismo. Há um nível normal de ácido úrico circulante que advém da degradação da purina, um tipo de proteína que faz parte, por exemplo, dos nucleotídeos e do ácido nucleico (o DNA é um deles), componentes essenciais do nosso organismo.
Como os outros componentes, depois de utilizadas, as purinas são degradadas e transformadas em ácido úrico. Parte dele permanece no sangue e o restante é eliminado pela urina. O nível máximo que pode ficar no organismo sem ocasionar problemas é 7mg por 100ml de sangue no homem e 6mg por 100ml, na mulher.
Se esse nível subir, ou porque estamos produzindo muito ácido úrico, ou porque estamos eliminando pouco pela urina, ele pode cristalizar-se, ou seja, formar pequenos cristais semelhantes a agulhinhas, que se depositam em vários locais do corpo, de preferência nas articulações. Quando esses cristais aumentam um pouco de tamanho e se acumulam, são vistos como corpos estranhos pelo organismo, que reage na tentativa de dissolvê-los. Ao atacá-los, as células brancas liberam enzimas. É como se fosse um campo de batalha, com tiro sobrando para todo lado. Nesse caso, sobra enzima e a articulação sofre com isso.
Drauzio – Tão logo o ácido úrico sobe e ultrapassa o valor normal, os cristais começam a depositar-se nas articulações?
Cristiano Zerbini – Esse é um ponto importante a ser destacado. Hiperuricemia, ou ácido úrico alto, não é sinônimo de gota. Mesmo com níveis de ácido úrico um pouco elevados, muitas pessoas jamais terão gota. Todavia, quando os exames de sangue, em geral de rotina, revelam índice superior a 9mg por 100ml, o médico levanta a história clínica do paciente considerando a possibilidade da incidência de gota, uma doença de caráter genético e hereditário, mais masculina do que feminina, que se manifesta na proporção de nove homens para uma mulher.
Portanto, uma das primeiras preocupações é saber se há casos da doença na família do paciente. “Alguém teve gota em sua família, ou pedras nos rins e cólica renal? – são perguntas que o médico não pode deixar de fazer.
Drauzio – Gota em mulher é doença rara?
Cristiano Zerbini – Geralmente na mulher, as crises de dor nas juntas provocadas pelo ácido úrico ocorrem quando ela está tomando diuréticos tiazídicos para controlar a pressão alta. Esse grupo de medicamentos dificulta a eliminação do ácido úrico e ele é acumulado no organismo. Esse tipo de gota é chamado gota secundária e é diferente da gota primária que ocorre especialmente no homem por produção aumentada ou excreção diminuída de ácido úrico, resultado de herança genética.
OUTROS FATORES DE RISCO
Drauzio – Existem outros aspectos que precisam ser observados para o diagnóstico de gota?
Cristiano Zerbini - Se além da herança genética, o paciente estiver um pouco mais gordo, é preciso verificar se é portador de diabetes e hipertensão arterial. Outra conduta importante é pesquisar, na história da família, se há casos de pessoas com dor precordial, pois a gota está entre as doenças que compõem a síndrome plurimetabólica.
É muito bom falar nisso, porque parece que estamos atravessando uma epidemia dessa síndrome no momento. Seu nome científico é “síndrome da resistência à insulina”, mas é conhecida também por “síndrome X”, de certa forma um nome meio místico. Ela é mais comum em homens com excesso de peso, abdômen um pouco protuso e circunferência da cintura maior do que 102cm – nas mulheres, essa medida não deve ultrapassar 88cm -, sinais indicativos de possíveis problemas metabólicos.
Drauzio – Por que essa medida da cintura é importante?
Cristiano Zerbini – A gordura abdominal é diferente da gordura amarelada que existe sob a pele. É chamada de gordura marrom porque tem muitos vasos sanguíneos. Essa gordura provoca resistência à insulina, hormônio responsável pelo metabolismo da glicose, isto é, pela entrada do açúcar na célula.
A resistência à insulina está associada a vários problemas, como aumento de trombos e lesão na parede dos vasos sangüíneos. Sabemos também que a gordura abdominal está diretamente ligada à presença de coronariopatia no homem.
Portanto, aumento da gordura abdominal, coronariopatia, hipertensão, diabetes leve do tipo II e níveis mais altos de ácido úrico sem incidência de gota são características da síndrome plurimetabólica. Se o paciente declarar, porém, que pai ou um irmão já tiveram cálculos renais ou crise de gota, seus níveis de ácido úrico precisam ser baixados.
Drauzio - Nesse caso, a pessoa corre o risco de desenvolver gota?
Cristiano Zerbini - Mais ou menos 20% das pessoas com hiperuricemia assintomática, ou seja, ácido úrico elevado sem sintomas, correm o risco de ter gota. Não se justifica, porém, dar remédio para baixar os níveis de quem não tem história familiar da doença ou 8mg por 100ml desse componente no sangue.
CARACTERÍSTICAS DA DOR
Drauzio – De vez em quando, todos nós podemos sentir dor em alguma articulação. Quais são as características dessa dor articular provocada pela gota?
Cristiano Zerbini - Gota é uma das doenças mais bem estudadas e documentadas no mundo. Hipócrates, duzentos anos antes de Cristo, já havia levantado alguns postulados sobre ela. Dizia que os eunucos não tinham gota e que a doença tinha algo a ver com a alimentação. Artistas, intelectuais e políticos do passado descreveram os sintomas tais como são bem conhecidos hoje.
A principal manifestação da gota é a podagra, uma inflamação intensa na articulação do dedão do pé (hallux) que provoca dor muito forte, em geral à noite e na lateral do dedão. É uma dor tão forte que chega a acordar o paciente e não suporta sequer encostar esse dedo no lençol da cama. A sensação é de que alguém está espetando ali um garfo pontudo e afiado.
Drauzio – O que a pessoa deve fazer quando é acordada por essa dor intensa?
Cristiano Zerbini – Deve permanecer em repouso, porque o ácido lático produzido pelo movimento pode piorar a crise de gota. Deve também colocar imediatamente uma bolsa de gelo no local afetado.
Drauzio – Geralmente, ocorre o oposto. As pessoas colocam calor no local.
Cristiano Zerbini – O calor faz piorar a inflamação, porque provoca a vasodilatação que favorece a chegada de mais substâncias inflamatórias. O gelo, ao contrário, provoca constrição nos vasos, o que dificulta a chegada dos mediadores da inflamação.
Embora não se deva estimular a automedicação, nessa hora, se a pessoa tiver um anti-inflamatório em casa pode tomá-lo para aliviar a dor, mas, na manhã seguinte, é bom procurar um médico.
Drauzio - Essa dor forte só ocorre no dedão do pé?
Cristiano Zerbini – Pode ocorrer também no joelho e, nesse caso, se chama gonagra.
Drauzio – Por que as crises de gota aparecem mais à noite e mais nos pés e nos joelhos?
Cristiano Zerbini – Porque à noite o período de jejum é maior e os níveis de ácido úrico aumenta no sangue o que facilita a deposição dos cristais. As crises acometem mais os pés e os joelhos porque os cristais se precipitam com mais facilidade nas áreas mais frias do corpo, como são as extremidades.
OUTROS SINTOMAS
Drauzio - Existe algum outro sintoma importante da gota?
Cristiano Zerbini – Outra manifestação importante é o aparecimento de tofos, isto é, de caroços brancos ou nódulos formados por cristais de ácido úrico que se depositam nas articulações. Na verdade, esses cristais são constituídos por monourato de sódio (ácido úrico + sódio).
Se os depósitos de cristais se acumularem muito, os tofos podem inflamar e doer durante a crise. Às vezes, não doem, mas quando localizados nos pés dificultam calçar os sapatos e, nos cotovelos, incomodam bastante.
Drauzio – Os sintomas da gota se manifestam sempre no mesmo local ou migram?
Cristiano Zerbini – Geralmente, o indivíduo que tem podagra tem sempre podagra. Se o sintoma apareceu pela primeira vez no pé, a tendência é a crise repetir-se no mesmo lugar.
Todavia, pessoas acima dos 65, 70 anos de idade podem apresentar dores poliarticulares características de uma forma pouco usual de gota, que provoca dores em várias articulações e não apenas em uma delas.
Drauzio – Essa crise de dor articular costuma durar quanto tempo?
Cristiano Zerbini – O quadro de gota é autolimitado. Sem tratamento, a dor pode durar de quatro, cinco dias a duas semanas, mas desaparece por si. No entanto, é sempre melhor tomar alguma providência para o paciente não ficar sofrendo por tanto tempo.
CÁLCULO RENAL
Drauzio – Existe alguma relação entre gota e cálculos renais?
Cristiano Zerbini - Embora não faça parte do espectro do quadro clínico da gota, muitos pacientes com a doença têm cálculo renal formado por ácido úrico.
Drauzio – Isso quer dizer que quem teve cálculo renal deve fazer exame de sangue para verificar os níveis de ácido úrico?
Cristiano Zerbini – Nós pedimos esse exame para todos os pacientes que apresentaram cálculos renais.
TRATAMENTO
Drauzio – Como se conduz o tratamento para a gota?
Cristiano Zerbini – O primeiro passo é tentar caracterizar a doença. Há dois tipos de pacientes com gota: o hiperprodutor e o hipoexcretor de ácido úrico. O primeiro produz tanto ácido úrico que não consegue eliminar o suficiente; o segundo produz normalmente, mas elimina pouco.
Apenas 10% das pessoas com gota são hiperprodutoras; os 90% restantes são hipoexcretoras. Para estabelecer a diferença, o médico pede ao mesmo tempo exame de ácido úrico no sangue a na urina e combina os resultados. Nível de ácido úrico normal no sangue e baixo na urina é sinal de que a pessoa excreta pouco. Nível alto no sangue e na urina indica que o rim deve estar fazendo o que pode, mas não consegue dar conta do recado, porque a produção é grande demais.
A escolha do tratamento baseia-se nesses resultados, já que existem remédios que inibem a produção e outros que aumentam a excreção de ácido úrico. Infelizmente, algumas pessoas precisam dos dois tipos porque produzem muito e excretam pouco ácido úrico.
Drauzio – Esse tratamento precisa ser mantido pela vida toda?
Cristiano Zerbini – Nunca digo ao paciente que o tratamento tem de ser feito pela vida inteira, porque muitos tratamentos são intermitentes na medicina. Quando atendo um hiperprodutor com níveis elevados de ácido úrico, prescrevo remédio para baixar a produção e vou acompanhando a resposta com exames laboratoriais. Quando o nível se normalizou e o paciente está bem, as doses do remédio são diminuídas. Eventualmente, seu uso pode ser suspenso, desde que a cada dois ou três meses repitam-se os exames para verificar a evolução do quadro.
O tratamento não se restringe aos medicamentos. É fundamental mudar alguns hábitos de vida. O paciente deve emagrecer, cuidar da pressão arterial, se for hipertenso, e adotar alimentação saudável e equilibrada. Digamos que esse tratamento mais global, sim, deve ser mantido pela vida toda.
IMPORTÂNCIA DA DIETA
Drauzio – No passado, dava-se importância extrema à dieta no controle do ácido úrico. Pessoas com ácido úrico elevado eram proibidas de comer proteínas. Esse conceito está fora de moda. Qual é o papel da dieta nas pessoas com ácido úrico elevado atualmente?
Cristiano Zerbini – A dieta antiga era um verdadeiro castigo. A pessoa não podia comer carne de vitela, nem peixe, nem frutos do mar e devia evitar o consumo de grãos. Hoje, trabalhos provaram que, se conseguíssemos retirar toda a purina da dieta, o que é praticamente impossível, o ácido úrico iria baixar 2mg, no máximo 3mg.
Drauzio – Isso quer dizer que numa pessoa com gota ele cairia de 11mg para 9mg e que, apesar da dieta rigorosa, ela continuaria com a doença do mesmo jeito.
Cristiano Zerbini –Isso se a pessoa eliminasse totalmente a purina da dieta, mas ninguém consegue fazê-lo, e tanto sacrifício para baixar 1mg ou 2mg não vale a pena. O que se pergunta a esses pacientes – vou usar o masculino porque a doença acomete mais os homens – é se notaram que algum alimento dispara as crises. Se foi churrasco ou feijoada, pode continuar comendo, mas em menores porções. Está provado que a cerveja está mais ligada às crises do que o vinho e deve ser consumida com moderação.
Drauzio – Qualé a explicação para isso?
Cristiano Zerbini – Só sabemos que o álcool torna o sangue um pouquinho mais ácido e isso facilita a deposição de cristais nas juntas.
Drauzio – Existe alguma dieta que mereça ser recomendada para os pacientes com gota?
Cristiano Zerbini – Dietas pouco calóricas, com baixa ingestão de carboidratos, que privilegiem os ácidos graxos insaturados, são as mais recomendadas. Como o leite e derivados melhoram a eliminação do ácido úrico, devem ser incluídos na dieta que, acima de tudo, precisa ser saudável e favorecer o controle da obesidade e da hipertensão.
ADESÃO AO TRATAMENTO
Drauzio – Como as pessoas com gota reagem quando você recomenda que tomem remédio, emagreçam e adotem uma dieta saudável?
Cristiano Zerbini – A aderência ao tratamento é proporcional aos sintomas dolorosos, ao sofrimento. Ninguém quer ter uma crise de gota, nem sentir a dor e o mal-estar que a doença provoca. Por isso, adere ao tratamento e melhora. A tendência, então, é achar que nunca mais vai ter outra crise e daí relaxa nos cuidados, come e bebe mais, engorda, não controla a pressão arterial e os sintomas voltam intensos, porque gota é uma doença que não tem cura, mas tem tratamento e pode ser controlada.
Fonte: drauziovarella.com.br